quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Campos de papoula no Ártico

Ela chega atrasada na parada do ônibus, a fila que passa de cinquenta pessoas, cansadas da jornada diária de trabalho. Passa na roleta, paga a quantia absurda que rouba boa parte do seu salário todo mês e vê que como em toda sua vida não consegui parar de sorrir, talvez algum trauma de infância, quem sabe alguma maneira de lidar com o stress, difícil dizer. Com sorte se senta no banco na frente do cobrador encarando a face entediada dos passageiros, arranca uma maçã da bolsa e a mastiga com atenção. Seus olhos param num homem relativamente obeso que parece ter seus 24 anos mais ou menos, camisa social de mangas curtas cinza (notasse uma mancha de caneta vermelha, acima do bolso no lado esquerdo), barba de mais ou menos duas semanas, sob o rosto um nariz torto. Ele sorri e a olha fixamente para janela e ocasionalmente para ela. Termina de comer sua maçã meio que hipnotizada por ele, pensando: “Essa figura esconde alguma coisa, sempre desconfiei de pessoas que sorriem demais e a encaram com seus olhares cínicos. Provavelmente algum estuprador intelectual, daqueles que firmam suas bases em fontes como wickpedia e toda essa merda que vemos na internet. Odeio esse lixo de pessoa, ele parece tão metido, do tipo que olha ás pessoas de cima para baixo. Tímido demais para flertar diretamente comigo, pena para ele que tenho visão periférica”.

Aos poucos sente seus olhos descendo, esta com muito sono, cansada do trabalho, da vida e da humanidade (pequeno exagero filosófico). Mas ela teima em não se deixar adormecer, mas a cada solavanco se acorda como se estivesse sido extirpada de algum sonho, sua visão se fecha no sorriso do homem, como no desenho da Alice (no país das maravilhas), aquelas teclas amarelas dançam na sua visão a puxando para um labirinto que não pode escapar.

- Acorda “Alice”...

A voz a chama no escuro, estranha e de certa forma familiar, ao fundo ela ouve a conversa de várias vozes. Não entendendo uma única palavra, como se fosse outra língua, mas sabendo que é sobre ela. No máximo ela é só uma consciência nesse vácuo negro de cochichos, não tem poder nenhum, ou sequer a sensação de um corpo, apenas uma presença.

- Não que eu não adore olhar você desse jeito tão indefesa e linda, mas sabe... Eu só posso ajudar se você acordar, o caminho é longo e creio que dependendo de suas atitudes, vai ter um longo descanso depois.

Ela desperta como se tivesse levado um murro forte no rosto, visão embaçada, desorientada, ônibus vazio, completamente vazio e uma iluminação de hospital que chega a cegar. Ao seu lado o simpático semi-obeso sorri sem mostrar os dentes, tentando se mostrar amigável.

- É sempre divertido ser acordada por estranhos né? Não precisa responder... (ri de forma engasgada, sugando saliva, som similar a de um porco). Bem é nessa hora que te estupro?

É difícil dizer se foi uma piada, ou não. Se foi, não teve muita graça, eu acho que ele notou. Por que olhou para baixo como criança que disse o que não devia, até fica bonitinho assim...

- Ok, ok, ok... Há eu deveria ter deixado essa piada de lado há muito tempo, um dia ainda vou pagar pelo que digo. De certa forma já paguei, ou estou pagando ainda? Não sei...
Mas chega de falar de mim mulher, bem eu sou o que chamam de acompanhante (não do tipo sexual infelizmente) e sim aquele que vai te levar para o próximo “julgamento”, o pra valer. O “pré” que você passou nesse momento, sabe ás “vozes sem sentido” é apenas o começo.

Ela o encara, contorce todo corpo pensando o quão babaca ele é se achando engraçado num momento que provavelmente nem ele sabe o que significa, sem forças e indefesa perto desse fanfarrão. Mas algo a impele a pular em cima dele com ás mãos em sua garganta enquanto grita coisas sem sentido e tenta chutar suas partes baixas ao mesmo tempo (procedimento padrão feminino). Para um babaca gordo ele é bem rápido, girando o corpo ele a derruba no chão (estranhamente não sente nenhuma dor) e põem o pé contra suas costas a imobilizando.

- Olha isso é tão divertido para mim quanto para você! Acho que você claramente não tem o mesmo humor que eu nessa situação. Mas como ia dizendo, nesse exato momento a senhorita esta passando pelo estagio de desencarnação, vulgo deixar o corpo e suas neuroses para trás. Aqui nesse mundo eu sou tão perigoso para ti quanto você é para mim, então podemos nos sentar e conversar como adultos?

De cara contra o chão espelhado do ônibus, ela olha indiretamente para os seus olhos castanhos, pela primeira vez sentindo uma simpatia por ele. Jogando o cabelo para cima com a intenção de tira-lo do rosto, encarando o, acena levemente. Aos poucos ele tira o pé de suas costas e se afasta e se senta no banco da frente, esperando calmamente. Conforme ela se levanta, ele olha para o pulso sem relógio e finge estar impaciente (continua sem graça).

- Bem, agora que nos conhecemos melhor (da uma leve piscada e sorri maniacamente). Deixe-me explicar nossa jornada, esta vendo esse belo busão branco nos levando “através do nunca”? Sim, minha dama isso é sua ultima visão do mundo terrestre, “transporte público”. Não é das melhores, mas poderia ser pior! Sugiro que não olhe para a linda paisagem ao lado, se for muito apegada a coisas mundanas, sabe tipo “vida” e coisas do tipo...

Pelas janelas ela via passarem conquistas, derrotas, traumas, amigos, seus familiares, ídolos, planos, sonhos, lugares, etc. Tudo emoldurado num quadro dividido entre presente, passado e futuro.  Num ponto ela observava como seria sua vida se tivesse encontrado o amor da sua vida. O homem entorta o pescoço olhando com pouca simpatia.

- Sempre acho divertido isso, todos nós temos isso na nossa linha do tempo. Sabe a “alma gêmea”, ou talvez o que achamos que seja. Sabe minha teoria? Eu acho que é uma ilusão, ou o quão sádico seria o nosso “Deus” nos deixar ver isso? Logo após saber que nunca poderemos encontrar essa pessoa, eu acho...

Encarando seus all stars vermelho, ele desaba sobre os ombros de cabeça baixa, mas logo um sorriso macabro assombra seu rosto escondendo toda dor que parece sentir, voltando com o seu cinismo inicial. Ao lado passa toda sua vida através dos vidros, rápido como um sulco arranhado de um vinil, mas ao mesmo tempo compreensível e nostálgico. Isso a faz pensar no que há pouco tempo chamava de vida, tudo passou tão rápido, ser usurpada assim sem ao menos ter chance de se despedir. Não era justo!

De repente o visor do ônibus indica “parada solicitada”, com uma leve parada a porta se abre. Na porta uma menina de cabelos escuros, um vestido azul claro e all star preto nos pés, o cabelo solto, na altura dos ombros. Sorrindo e emanando uma felicidade genuína que a chamava (não verbalmente, mas sim na cabeça dela), cada vez mais forte e mais tentadora, levando a algo conhecido que havia perdido. Levantando-se, a cada passo em direção à menina que um dia foi e de certa forma ainda esta ali. Quando estava preste a alcançar a mão da menina, algo a jogou contra a parede com força, o impacto a atingiu como se tivesse quebrado todos os ossos, juntando forças para se levantar e correr. Sentiu um soco no rosto a derrubar de novo, levantando o rosto para ver o que a atingia um chute certeiro na boca à fez cair, a sensação de ter perdido todos o dentes a fez parar. Na sua frente uma figura all stars vermelhos, calça jeans preta e camisa social cinza e o rosto demoníaco.

AS LUZES SE APAGAM.

Cegada novamente pelas luzes fortes, o pouco que via dava para notar que o “busão’ estava em movimento de novo, porta fechada e ás imagens da sua vida passando pelas janelas de forma mais distorcida. A figura demoníaca sumira. Por algum momento se sentiu extremamente sozinha e como se tivesse perdido algo muito importante, algo que queria ter, mas no fundo sabia que sua posse era passageira, mas mesmo assim queria encapsular aquilo para sempre. Ouviu uma voz suave vindo do banco onde estava sentada, ele permanecia como se nada tivesse acontecido, falando amigavelmente com ela.

- Esse é sempre complicado, sabe...  A infância, a minha não foi tão divertida. Adicione pai ausente e irmão mais velho torturador. Mas sempre me pergunto se na minha vez, não fiquei tentado também. Quando se envelhece a infância é algo que sentimos falta. A ingenuidade e inocência de cada momento ser único, até ser destruída por tudo que nos rodeia. Nada fica puro por muito tempo, mas não me ache amargurado nem nada, só curto a ironia.

Ele olha de forma debochada, tentando esconder o que sente de novo, mas sabendo que é perda de tempo. Levanta e calmamente vai à direção do corpo que se encontra no chão encostado na parede e estende a mão. Ela baixa o rosto tentando visualizar ás hematomas que não existem, os dentes no chão e olha de volta. Não há remorso e nem culpa no rosto, como se fosse algo que deveria fazer. Ela se levanta sozinha e caminha calmamente para o banco onde estava, ele a observa constrangido, mas não parecendo se importar muito, a espera sentar e volta tentando assobiar uma canção que lembra uma melodia dos Beatles. Os dois ficam em silencio por alguns momentos, que na realidade parecem ser uma eternidade.
Vendo que ela não pretende falar, ele tenta articular alguma coisa para chamar a atenção “ela ficar olhando para o que foi a vida, não ajuda muito durante a passagem” (resmunga).

- Existe um compositor (ou pelo menos existia) que escrevia muitas músicas, mas muitas mesmo. Igual a um “serial killer” se me entende? Ele sempre quis ser músico, mas de certa forma nunca poderia ser, suas canções eram muito pessoais para serem divididas. Talvez fosse sua natureza muito critica que o limitava, ou o fato de que quando compunha uma canção nunca pensava muito no que ela significava no momento, era como se fosse um pedaço de carne exposto, cru e vivo demais para digerir. O que sempre me chamou a atenção nas obras dele era como ele juntava algo simples a frases que não tinham sentido algum aparentemente. Uma vez perguntei: Você não sabe explicar nenhuma das suas letras? Ele respondeu: “Não na hora, mas depois tudo faz talvez sim.” Nunca entende o que ele quis dizer, mas agora eu acho que sei. Tem coisas que só ganham sentido depois, sabe quando se olha para trás, como só se tivesse sentido no final de toda obra estar montada, igual a um quebra-cabeça. Muito dos versos que ele pôs no papel eram só rimas, coisas que soam legais junto, mas o inconsciente dele dizia muito mais, ele não tinha controle sobre isso. No fundo a vida é assim, uma obra inacabada e imperfeita.

O ônibus parou dessa vez sem fazer barulho nenhum, a porta se abriu e através dela ela via um vácuo que não poderia ser definido, onde se encontrava tudo o que deveria ser e não ser ao mesmo tempo. Um borrão que formava um universo inominável. Ele acompanhou os olhos dela se perdendo na coisa e apenas sussurrou.

- A primeira vez eu seguro, agora você esta por ti. Esta vendo aquela coisa sem forma? Diremos que ela uma armadilha continua, sem passado, presente e nem futuro que prende sua alma nesse stato quo. O fato de não ser nada e ao mesmo tempo ser tudo é interessante, mas ouvi falar que o fim da linha é bem melhor, talvez todas suas respostas estejam lá, ou talvez não. Mas só tem um jeito de saber.

A coisa tomava formas, mas nunca se definia, seduzia com tantas dimensões que era difícil dizer em qual se poderia embarcar. De certa forma se alimentava de quem a olhava, pegando todos seus desejos e condensando em um, a coisa a encarava sem dizer nada com coisas que não pareciam olhos e ao mesmo tempo sim. O “acompanhante” a olhava com um olhar divertido, ele falou da coisa, mas em nenhum momento olhou para ela diretamente (quase que como a temesse também), sorrindo fez sinal que faltava pouco. O ônibus fechou a porta, mas não entrou em movimento, estático, sem imagem nas janelas, escuridão absoluta. E do nada, eles estão caindo numa velocidade que a fazia subir até o teto, menos ele que a olhava com um olhar curioso, ela sentia que a queda estava cada vez mais próxima e não havia nada a fazer. Ele se levantou e a olhou de forma perversa como se estivesse enlouquecido com a queda e começou a rir cada vez mais alto, e mais alto a ponto de a risada ser a única coisa no ar.

AS LUZES SE APAGAM.

 - Eu sempre gostei de um pouco de drama, vai dizer que o meu lance agora não ficou bem parecido com Gene Wilder no filme A fantástica fabrica de chocolates? Eu não precisava fazer isso, mas achei que daria um toque mais atraente. Só não recitei um poema por que seria meio exagerado, ainda mais que durante toda minha vida, poesia não foi um dos meus fortes, mas chega de falar de mim. Gostou do visual?

O ônibus tinha um aspecto vitoriano, se é que era um ônibus, parecia mais um trem de época, provavelmente século XIII. Papel de parede verde escuro em contraste com ás janelas de madeira, no lugar de vários bancos havia luxuosas poltronas marrons de couro sob uma tapeçaria vermelha escura. Em cada canto do vagão havia uma luminária com luz amarela exceto o direito onde estava o lugar do cobrador havia um bar com um barman de calças sociais preta, camisa branca e colete vermelho com gravata borboleta feito de cartolina em tamanho real. O gordinho parecia se divertir com a cara dela.

- E dizem que “Deus” não tem senso de humor... Ok, isso é meio estranho vou ter que assumir, mas depois que se esta há algum tempo aqui tudo parece normal. Menos aquele maldito barman que nunca me servi um drink! Mesmo que eu não beba seria bom de vez em quando. Estamos quase no final, que tal mais uma estória? Já conheceu alguém que vinha e saia da sua vida? Um amigo ou qualquer coisa parecida. Aquela pessoa que poderia estar há anos afastada, mas toda vez que se encontravam era como se tivessem se falado noutro dia. Eu conheci uma garota assim, sabe como se fosse para ser “a”, mas nunca foi. Quase como algo que devia encaixar, mas por alguma razão não encaixa, te deixa com duas peças solta e você sabe que no final cada peça vai se perder e não há nada que possamos fazer, todos estamos fadados a percorrer um abismo solitário sem fim.

O trem parou como um certo esforço, como se estivesse realmente nos trilhos, a porta do vagão se abriu lentamente revelando várias pessoas caminhando de lá para cá numa tela escura, rosto pálidos e cabisbaixos parecendo extremamente preocupados, ninguém conversava ou parecia notar a presença um do outro (sozinho entre milhões). O homem sorriu e se levantou calmamente, se espreguiçando durante o caminho ele assobiava os acordes iniciais de “Imagine” de John Lennon, antes de sair ele virou.

- Bem esse é meu ponto, daqui você esta sozinha, mas nada tema guria. Diferente de mim é apenas por algum tempo. Mas vamos dizer que não aprendemos algo hoje? Eu não sei bem o que, por que toda vez que meu tênis toca esse chão canceroso é como se nada tivesse acontecido. Eu volto para meu quarto, pego meu violão, escrevo algumas músicas e as contemplo por um tempo, tento entende-las, mas não consigo. Eu diria “até mais”, mas você sabe...

Ela sorriu para ele pela primeira vez, provavelmente por pena, mas ao mesmo tempo intrigada pelo que eles haviam passado até ali. Mesmo que perda a companhia de um cara tão irritante, ia sentir falta dele. Até mais do que deveria, depois de tudo isso. Ela sentia que preferia estar com alguém que não conhecesse do que ir para um lugar que nem sabia o que era. Assim que ele pisou na tela escura, caminhou como se nem tivesse saído de dentro do vagão.


Ela olhou inquieta, não conseguia aguentar a solidão, mesmo que fosse por tão pouco tempo. Algo no corpo dela dizia para correr atrás dele, ela tentava resistir, mas até ali, ele havia sido seu único amigo, que a protegeu dos demônios e dela mesma. Quem iria protegê-la no final disso tudo? A porta começou a se fechar lentamente, e ela via a figura corpulenta cada vez mais longe, entrando no mar de espectros, passando por eles e chegando ao fundo da tela. Num segundo ela estava correndo em direção à porta, com toda velocidade que podia correr, pensando em alcança-lo e dizer o quanto queria lhe fazer companhia, ser sua amiga e nunca deixa-lo sozinho. Assim que pisou no vazio todos desapareceram, os fantasmas, um por um foram se apagando a sua frente até chegar ao seu acompanhante que sumiu como uma estrela cadente no céu negro e ao virar para trás o trem havia partido.





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